09 agosto, 2014

O assassinato de Maria Silvia


Noite comum, corriqueira. Maria Silvia, açoitada, enquanto o era, pelo furioso esposo, imotivado, resgatou do além a Pitonisa que, encarnada, soluçava através das cordas suas, chorosas vozes em coro, uníssona promessa. Enigmática, na verdade que encerra, retumba a profecia.

- Já não canto mais, apito. E é o instante, existe. Existe às costas do sofá, tuas costas: apita o árbitro, começa o jogo. O pontapé inicial – trapaça! – tão logo é dado, tão logo é repetido: abres o placar? O placar e muito mais; sou goleada, malograda guarda-redes, mal posso guardar-me a cabeça, quiçá as vastas terras detrás e debaixo! Me invades (sic.)? Não mais. Serei juíza e apitarei tão alto que te hás de calar e tua torcida, apitarei tão forte – os ventos ensurdecedores – que tu desfalecerás! Prostrar-se-á diante de minha concha oca, vazia do último suspiro.

Sobre o fogão uma chaleira ouve a conversa, atenta e silenciosa.

- Quem és tu? - pergunta o marido, estarrecido.

- Antes eu fôra Maria! Maria-Que-Morreu-Antes: antes de ti, de teu amor, de teus amores, carícias plenas de facas Zhakarov - mas não era Maria sob um trem na Rússia; meus cortes Tramontina são mais longos, menos profundos e mais doridos, nem sequer me honraste com perfurar-me as vísceras e sinto que se tentasses não o conseguirias, raso que és como uma colher de chá de fermento Fleischmann: o bolo, ele só crescerá no forno, mas eu, eu não respondo bem ao calor... E já não demora eu apito: Maria-Fumaça. Café com pão, café bem quente, vou depressa, vou correndo, vou na toda, que só levo muita gente, muita gente... Ah! também a manteiga derrete sobre a mesa na manhã acompanhada de panquecas e café passado em coador de carne viva, jamais tivera ele tão viva cor. E o aroma!...

Na cozinha, chiavam chama e chaleira, co’estas palavras.

- Cala-te! Que dizes? Deparafusaste? Arre! Que te remendo! – e arremeda-se à moça.

Nem mal avança é repelido pela mulher, que lhe desfere no orgulho um derradeiro golpe de língua, selando com saliva o trágico seu destino.

- Ah! carnes cruas que os golpes não amolecem! Culpei os bifes, era o martelo… O palito que sempre voltava seco ao penetrar um pão assando, tédio: ai! inveja dos que passaram do ponto! Permaneci crua e por crua, sovada. Perdi meus sucos, senti-me incozível, impalatável. Engano! Mas hoje serei meu melhor guizado, os vapores que nunca senti! Eu apito!

Num frenesi sibilino, percorriam as mãos da moça o seu corpo, como se buscassem o consolo último da Carne esquecida. Contorcia-se, tocava-se como se já não existisse, desesperadamente. Tentava concretizar-se mulher, mulher só, mulher livre, no instante derradeiro: morrer mulher, e a morte era certa. No fundo, sempre estivera morta, mas desejou ardentemente que morta não fosse levada: iria viva, caminhando com as próprias pernas. Lança, então, uma risada orgástica; enche de gôzo o espaço.

- Abominável! - o homem brada, enlouquecido.

Corre à cozinha. Traz consigo a sonora chaleira. Verte o ódio profundo sobre a jovem, que, meu Deus! apita – a água ferve! Encharca-se o chão do chá das dores de um amor velho. A chaleira expira um vapor último. É morta.

Ao contemplar a cena, o homem cai de joelhos; chora. Turibilhonescas, as palavras giram que da consorte ouvira: tudo se encaixa. E apita à esposa, ali, uma cantiga triste – que a ela o amor que votava, se o tinha, era somente atraso.

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