20 outubro, 2015

tomografia


certo dia enquanto lia
e relia meus poemas todos
percebi mas dei de tonto
percebi que sou
retórico

com ar inabalável
de quem finge
não saber o mal que tem
ou a morte que padece
fiz ligar a um amigo
desses que entende de poemas
imediatamente

recomendou-me o que temia
que não deixasse por isso
de escrever e sobretudo
que procurasse um médico
o meu suspiro de renúncia
não poderia jamais abafar
com sua longa soprosidade
os impulsos incontroláveis
de meu coração doente

liguei

disse o doutor engano
isso de ser coronária a retórica
retórica disse
é mal de cabeça
e tão avançado meu 'stado
que me recomendou
pronta e gratuitamente
uma tomografia

..........................

póstomografado
na sala de espera
esperava do exame
os resultados como fossem mesmo
a futura fortuna crítica
de minha poesia reunida:
um veredicto
sobre minha estadia ou não num desses
didáticos livros do ensino médio
túmulos

veio o enfermeiro
abriu um envelope estreito e esbelto
que me inspirou coragem
e dele vi sair o exame
como visse o improvável resgate
de Narciso pelo corpo de bombeiros:
tarde demais, o jovem jaz
morto na maca
mas cônscio e úmido de sua beleza infinda

o que saiu de lá contudo
só me fez confundir
o exame
li e reli como se meus poemas
nada pude encontrar
inconclusivo
o exame em si
apontava apenas
- não há silepses.

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