quero manifestar aqui
meu desapreço
o feijão está caro
e já odisseias inteiras separam
de uma boa uma má cebola
mas cá as más
caras as más prevalecem
antologias de tragédias quantas cebolas num saco
desapreço
desapreço não é desprezo
desapego tampouco
de mim requereria um mais um menos
h u m a n i d a d e
corolário do que sinto e do que sinto
que sou
a minha existência mesma
- humano apenas ao ponto do desapreço
é pouco
como o abraço inescapável
mesmo ao mais tenro grão
que afrouxado pelos anos
hoje lhe tudo vê faltar
por entre os braços
(a sensação de abraçar contudo
permanece)
inflação dizem uns
outros alta do dólar
no chão feijões por entre os braços frouxos
eu digo
desapreço
é pouco
desapreço não é desprezo
...............
caminho só pelos corredores
vazios do supermercado
vazios de mim
vazios de tudo
vadio
não há plaqueta que registre o preço
que me fuja à vista
que revista e varre
e reveste e revira
investe
naquela monotonia habitual
(todos plaquetas e preços os mesmos
caros igualmente caros
caros de quem)
uma que me há chama
a atenção cansada
- o íntimo sabonete em gel não tem preço
quase me excedo
como ali tão baixo tão alto
nas prateleiras arroubo tal
de poesia moderna
um poema não tem preço
não sei julgar nem jogar
jugo lastimável a poesia
falta-me o espírito esportivo
sobra desapreço
e o desapego é tão pouco tão pouco
...............
no caixa se vão passando
compra por compra por compra
nada custa
o preço que pago
é tão somente o preço
do esquecimento
do apagamento total de minha presença ali
por quem sabe duas três semanas
o único preço justo a se pagar
ainda assim
faço parada obrigatória
no guichê do reclame aqui
levo gratuitamente o formulário
que jamais preencherei
chego ao carro
divido-me o fôlego restante
entre o porta-mala e a buzina
e os pedais deixo guiarem-me
até mi'a casa
...............
o desconforto do lar não me acalma
não há não haverá paz
ligo a tevê
desapreço
nos jornais
desapreço
qualquer livro que abro
diz desapreço toda parte
na pia a água suja
sobre a imunda louça
inunda desapreço
o fogão chameja desapreço
desapreço o bafejo quente do forno
o íntimo sabonete em gel e um formulário
sem serventia alguma
inúteis ou mais inúteis que mi'a vidinha funcional
tudo diz
tudo conta
tudo exala e fede
desapreço
desapreço
desapreço
é pouco
mas estou exausto
e não há não haverá descanso
esquecimento apenas
apagamento apenas
penas duras penas
pois quando me deitar enfim
nunca terei sabido
o preço do feijão
o controverso sabor das cebolas
ou bem como bem escolhê-las
terei lido jamais sequer uma tragédia
trágica embora hei de julgar a vida
mas quereria ainda assim
manifestar aqui meu desapreço
corolário do que sinto e do que sinto
que fui
de uma suposta existência
quem saberá se a minha
- humana ao ponto talvez do desapreço ou mais
ou menos ou ainda muito menos
desapego
...............
desprezo
...............
um formulário sobre a mesa jaz pousado em branco
...............
desprezo
...............
um formulário sobre a mesa jaz pousado em branco
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