Tomou conta da cidade um boato, aliás, bastante verdadeiro: todo aquele que caminhasse de cabeça baixa, perscrutando o chão, não chegaria ao seu destino antes de encontrar, caída, ao menos uma moeda. Jamais se saberá como pode o rumor ganhar tal projeção, tão poucos os ouvidos aos quais não tenha chegado. Logo, para maior surpresa, instalou-se o caos na cidade - não houve alma sã que não houvesse crido no santo boato. Não tardou, a prestação de diversos serviços fora prejudicada. Abandonaram-se os automóveis. O transporte público, às traças... Só se fazia andar, abaixar a cabeça e rezar para encontrar a dita moedinha, quem sabe se não a primeira de muitas.
É claro que se não afetaram todos de pronto. O bom senso, tomou-o o frenesi primeiro aos mais pobres, cuja consciência profunda da exploração diária aflorou com a promessa de livramento que era o caçar-níqueis. Zombeteira, a elite lançava, de início, tostões às centenas pelas janelas dos flats sobre as áreas de convivência de seus condomínios de luxo, apenas para assistirem degladiar-se as poucas empregadas que se mantiveram no serviço - reminiscências de Roma para ornar com as colunas do portal do prédio e com a decoração neo-clássica das salas de estar. De quebra, conheciam, ainda, aqueles que dentre os seus decaíam, e que logo menos se estariam mudando por falta de meios. Mas não demorou, também os ricos nas avenidas trotavam às catas pelas sarjetas, em busca de ressarcimento dos prejuízos acumulados no joguinho de outrora: se algo há de certo, é que Roma sempre haverá de cair, e com ela cairá quem dela se reveste.
Quando o delírio e o consequente tumulto atingiram seu ápice, eram as ruas apinhadas, um carnaval perene, e as pessoas sem ter destino ao qual dirigirem-se não mais achavam uma só moeda, senão com tremenda dificuldade. Nisto, acumulavam-se incidentes. A secretária de um hospital, a única funcionária a se manter até ali em atividade e assídua, registrava, diariamente, um sem-fim de casos estúpidos de toda sorte, geralmente aos pares: encontrões de cabeça, pisões de pés, ombros e joelhos roxos... Dava ela entrada a cada um dos processos que, todos sabiam, não seriam jamais atendidos. Sem patrão, passou a cobrar um vintém por caso registrado.
A situação já não se poderia sustentar por muito tempo mais: começou o povo a cair em si, pouco a pouco. Viram-se roubando uns aos outros, inadvertidamente: tudo quanto encontravam, e era pouco, fora derrubado, perdido por outrem, em condição análoga. Finda a histeria em que foram lançados, o caso todo passou a ser rememorado com ares de nostalgia, aliviadas na lembrança as vividas circunstâncias mais terríveis. Dentre os que tudo presenciaram e viveram, há quem conte, hoje, como encontrou seu grande amor em meio à turba, num daqueles encontrões de cabeça, cujo registro hospitalar se fez emoldurar e pendurar no quarto, sobre a cama do casal. A secretária, hoje milionária, pouco depois abandonou a cidade, onde é ré da recém-instaurada comissão parlamentar de inquérito que apura o boato.
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